12 - Quando “Bira presidente” nos deixa, o que tem a ver com a nossa vida?
Série - O que isso tem a ver com a nossa vida?
“Este samba é pra você
Que vive a falar, a criticar
Querendo esnobar, querendo acabar
Com a nossa cultura popular
É bonito de se ver
O samba correr pro lado de lá
Fronteira não há pra nos impedir
Você não samba mas tem que aplaudir”
(A Batucada Dos Nossos Tantãs)
Talvez você não conhecesse seu nome de batismo, Ubirajara Félix do Nascimento. Mas se já ouviu um tantinho de samba de verdade, daquele com repique, partido-alto e riso solto, você já ouviu a alma de Bira Presidente. Fundador do bloco Cacique de Ramos e do grupo Fundo de Quintal. Bira nos deixou no sábado, no dia 14 de junho de 2025, aos 88 anos, no Rio de Janeiro. E com ele parte um dos grandes pilares da história viva do samba brasileiro, especialmente do Rio de Janeiro.
Vi ele algumas vezes nos shows do Fundo de Quintal, além da TV. Era um encanto. Era arte.
E o que isso tem a ver com a nossa vida?
Tem a ver com memória, ancestralidade e identidade. Bira foi um dos grandes guardiões dessa tradição. Sua trajetória atravessa décadas de transformação do samba carioca, do terreiro à televisão, da roda de fundo de quintal aos palcos do mundo. E ele fez isso sem perder o axé, sem se render à pasteurização que muitos chamam de "sucesso".
O samba é uma das expressões culturais mais emblemáticas do Brasil, não apenas por sua musicalidade, mas por sua profunda ligação com a história, a resistência e a identidade do povo brasileiro. Nascido da diáspora africana e forjado nas comunidades negras urbanas, com suas primeiras expressões no final do século XIX, na Bahia, com a mistura de ritmos africanos e outras expressões culturais. Posteriormente, o samba ganhou outras cadências e se popularizou no Rio de Janeiro, principalmente no início do século XX, com forte influência da cultura afro-brasileira. O samba traduz em ritmo, corpo e poesia as alegrias, dores e lutas do povo. Mais do que um gênero musical, ele é linguagem política, espaço de afeto coletivo e território simbólico de pertencimento. Sua batida embala desde festas populares até protestos sociais, articulando tradição e renovação, ancestralidade e crítica social.
No início dos anos 1960, Bira ajudou a fundar o Cacique de Ramos, bloco de carnaval que virou uma verdadeira escola de formação cultural, artística e política. Foi no terreiro do Cacique, na Rua Uranos, que surgiram talentos como Arlindo Cruz, Jorge Aragão, Zeca Pagodinho, Sombrinha e Almir Guineto. Ali não se ensinava só música. Se transmitia saberes, ginga, respeito, ancestralidade e, sobretudo, comunidade.
O Fundo de Quintal, surgido nesse contexto, nos anos 1970, foi o maior exemplo da renovação estética do samba a partir das periferias. Com instrumentos como tantan, repique de mão e banjo, reinventaram a batucada e abriram caminho para a geração que viria a dominar os anos 1980 e 1990. E Bira estava sempre ali, tocando o pandeiro e conduzindo com humor e firmeza a cadência da roda. Bira utilizava diversas técnicas para tocar pandeiro, como toques na borda para sons graves e viradas carregadas nas platinelas.
A partida de Bira nos faz lembrar que o samba é mais do que música. É resistência, é linguagem política, é celebração da vida em meio à precariedade. O Rio de Janeiro vive há anos o abandono das políticas culturais e urbanas que sustentavam manifestações como o samba. A gentrificação expulsa os sambistas e as rodas de samba raiz dos centros e tira o direito à festa de quem a inventou. Nesse cenário, Bira era um bastião: não por saudosismo, mas por insistência em manter vivo o Brasil que canta antes de chorar.
Bira também representa a transição do samba do morro para o mundo. Ele fez parte do processo em que o samba se tornou símbolo da identidade nacional, mas nunca deixou de denunciar o apagamento das raízes populares. Era daqueles que usavam a alegria como forma de denúncia. Sabia que o sorriso no palco vinha de muita dor nos bastidores das ruas do Rio de Janeiro.
Sua partida é uma chance de parar e pensar: quem são os mestres da cultura popular que ainda estão vivos? Quem cuida deles? Quem dá valor à memória viva das comunidades?
Bira nos lembra que o samba não é só do passado. É projeto de futuro. Um futuro em que o samba segue como linguagem de afeto e de luta. Onde a batida no pandeiro marca o ritmo dos corpos. Onde o Cacique de Ramos segue sendo referência de pertencimento, beleza negra e periférica.
Mas se escutarmos bem, ainda é possível ouvir Bira tocando pandeiro ao fundo. Ele não foi embora. Virou tambor, virou lembrança. É fundamento!
O seu velório aconteceu nesta segunda-feira (16), as 14h no Cemitério Jardim da Saudade, em Sulacap, zona norte do Rio.
Bira deixa as filhas Karla Marcelly e Christian Kelly, vice-presidente e diretora-geral do Cacique de Ramos; os netos Yan e Brian, e a bisneta Lua.
Um Viva a Bira Presidente!