15 - Por que a comida está cara e de baixa qualidade? E o que isso tem a ver com a reforma agrária?
Série "O que tem a ver com a nossa vida?
Você chega na feira e o tomate está custando quase oito reais. O alface, quando tem, está murcho e custa quase quatro reais. O coxão duro não baixa de trinta reais. E uma pergunta ressurge com força: mesmo com alguma redução de preço, por que a comida segue tão cara e pouco diversificada? A resposta é incômoda. Porque a terra em que se planta e se cria ainda está na mão de poucos. E os governos, inclusive este, continuam fingindo que isso não é um problema social, mas tratam como uma questão eleitoral.
Ao longo da história, a humanidade cultivou mais de 7.000 espécies de plantas para alimentação, refletindo uma vasta diversidade adaptada a diferentes ecossistemas e culturas. No entanto, atualmente, apenas 30 espécies fornecem 95% das calorias consumidas globalmente, e três culturas (arroz, trigo e milho) respondem por cerca de 60% da dieta humana (FAO 2019). Essa drástica redução da variabilidade alimentar é resultado de fatores como a expansão da agricultura industrial, a padronização do consumo imposta pela globalização capitalista, a perda de saberes tradicionais e o avanço das monoculturas sobre ecossistemas diversos (Shiva 2000; ETC Group 2013). Segundo a FAO, mais de 75% da diversidade genética agrícola foi perdida no último século, tornando o sistema alimentar global mais vulnerável a pragas, mudanças climáticas e crises de abastecimento. Preservar a agrobiodiversidade é, portanto, uma questão estratégica para a segurança alimentar e a resiliência ecológica do planeta.
Sucessivos governos federais no Brasil, inclusive o atual, insistem em manter um modelo agroexportador concentrador, baseado em monocultura, veneno e agroexportador, enquanto empurra a agricultura familiar e camponesa para os cantos da política, da terra e do orçamento. Quem alimenta o país com alimentos variados e essenciais são os pequenos produtores, assentados, camponeses, povos originários e comunidades tradicionais. O PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) é celebrado com fotos, mas executado com freio. O orçamento do MDA não dá conta nem do básico. E o crédito e o subsídio para a agricultura familiar, quando vem, vem cheio de exigência, burocracia dos bancos, mesmo que com juros menores. É o tal “tem a política, mas tá faltando”.
No governo Lula 3, a retórica do “Brasil voltou” não chegou também à reforma agrária. Até agora, menos de duas mil famílias foram assentadas, número irrisório diante da demanda reprimida de centenas de milhares de trabalhadores(as) rurais sem terra. Enquanto isso, a grilagem continua, as ameaças a lideranças se multiplicam e o agronegócio tem assento cativo no Planalto, na Esplanada e nas emendas do Congresso.
E se engana quem pensa que essa luta por terra começou agora. O Brasil tem uma longa história de resistência no campo. Nos anos 1950 e 60, as Ligas Camponesas já denunciavam a concentração de terras, a fome e o abandono das populações rurais. E, apesar da repressão e do silenciamento imposto pela ditadura, deixaram marcas na luta pela reforma agrária. Hoje, décadas depois, a luta pela terra tem os mesmos desafios, com novas formas de luta, mas com a mesma urgência: democratizar o acesso à terra é garantir comida no prato, dignidade e justiça no campo.
A elite fundiária brasileira, historicamente protegida e que aparelha parte do Estado, segue com benefícios fiscais, perdão de dívidas e acesso prioritário a crédito subsidiado. O agronegócio é chamado de "pop", enquanto as cozinhas populares e a ideia de ter alimentos mais baratos e saudáveis são tratados como detalhe, não como o principal. A lógica que deveria ser invertida continua quase intacta.
E aí o resultado aparece na nossa sacola da feira e quando a gente abre a geladeira.
O preço da comida sobe porque a terra e o orçamento para a produção oriundo dos nossos impostos está nas mãos de quem quer produzir monocultura agroexportadora e paga percentualmente muito menos imposto. O modelo de monocultura para exportação produz commodities, não comida diversificada. Os alimentos de verdade, os que sustentam e abastecem o cotidiano da população brasileira vêm da agricultura familiar e camponesa, que está sendo deixada de lado. Sem terra, sem apoio técnico, sem orçamento e sem política pública robusta, o alimento saudável vira privilégio e mercadoria de luxo. E o que sobra para a maioria da população são os ultraprocessados, pouca proteína, pouca fibra, problemas de saúde e sabor de promessas não cumpridas. O consumo excessivo de ultraprocessados está ligado a diversas doenças como obesidade, diabetes, hipertensão e alguns tipos de câncer. E isso não é obra do acaso.
As grandes corporações alimentares fazem escolhas conscientes sobre o que e para quem vão vender. Em países ricos, os alimentos infantis têm menos açúcar, menos aditivos. Em países do Sul global, a mesma marca despeja produtos ultraprocessados, cheios de açúcar e sódio. É uma política alimentar disfarçada de mercado. E quem paga a conta é o nosso corpo, a nossa saúde e a nossa soberania (Public Eye, 2024). São decisões que revelam um projeto: um projeto que lucra com a desigualdade.
O governo que foi eleito com apoio dos movimentos do campo, das periferias e da soberania alimentar não pode continuar tratando a terra como um tema a ser escondido e não debatido. Reforma agrária não é uma pauta do passado, é uma condição presente para resolver o problema da fome, do preço dos alimentos, da saúde pública e da justiça social. Coisa que muitos países capitalistas, inclusive os EUA, já fizeram na sua história sem a paranóia ou a falácia de que isso é pauta “comunista”.
E que não venham com o mantra da “correlação de forças”. Porque, quando é para agradar o agro, aprovar liberação recorde de agrotóxicos ou fazer foto em estande da CNA, a força aparece. Mas quando é para assentar famílias, garantir orçamento ao MDA ou investir em agroecologia, a força vira silêncio.
Sem reforma agrária, a comida continuará cara, pouco acessível e muita das vezes com alto teor de agrotóxico, açucar, corantes, gorduras, sódio etc. Enquanto isso o slogan “mais comida no prato do povo” vira mais uma frase bonita em discurso de campanha.
Então, da próxima vez que você olhar para a conta do mercado e se perguntar o que está acontecendo, lembre-se. Para termos comida boa e barata, é preciso reforma agrária. Com terra, apoio e justiça, o que brota não é só alimento, é um futuro digno e soberano para o Brasil.
Obs: imagem de capa gerada por IA (Opem IA) sob comando humano.