16 - O que as enchentes no Rio Grande do Sul tem a ver com a nossa vida?
Série "O que tem a ver com a nossa vida?"
Texto escrito por alguém nascido no RS, em Santa Maria - RS, e que acordou “full pistola”.
A gente acorda, liga a TV ou rola o celular e vê: mais um ano de enchente no Rio Grande do Sul (RS). Casas submersas, gente sendo resgatada em barcos, cidades paralisadas. Talvez sua primeira reação seja de pesar, seguida de um certo distanciamento: “que tragédia… mas é lá no Sul de novo”. A verdade é que não está tão longe assim. Isso tem tudo a ver com a sua vida e com a forma como o Brasil inteiro está sendo administrado.
Nas últimas semanas de junho de 2025, o RS voltou a ser duramente atingido pelas chuvas. Mais de 107 cidades foram afetadas. Quase 7 mil pessoas tiveram que deixar suas casas. Três mortes foram confirmadas. Rios como o Jacuí, o Taquari e o Caí transbordaram, e o nível da água em Cachoeira do Sul chegou a 26,3 metros, a terceira maior enchente da história, só atrás das de 1941 e 2024. Pontes interditadas, escolas paralisadas, lavouras perdidas e vidas interrompidas. E o que mais indigna é que isso já não é exceção. Virou rotina.
Mas como se explica que, mesmo após todo o dinheiro enviado pelo governo federal em 2024, esteja-se vivendo tudo de novo? Afinal, em 2024, o RS recebeu bilhões de reais em apoio emergencial: recursos para reconstrução, linhas de crédito, FGTS, apoio à agricultura familiar. Onde foi parar tudo isso?
A resposta, infelizmente, está na forma como escolhemos lidar com crises no Brasil: como se estivéssemos tentando consertar um vazamento com durex. A maior parte dos recursos foi usada para ações paliativas e emergenciais. Foram distribuídos colchões, cestas básicas, combustível, madeira, recomposição de estradas, crédito para empresas. etc. Tudo necessário, mas passageiro. As obras estruturais, como drenagens, contenções de encostas, revitalização de bacias hidrográficas e sistemas de alerta, ficaram no papel ou andaram devagar demais para fazer diferença em 2025.
Além disso, os recursos foram pulverizados entre diferentes entes e órgãos, muitos sem capacidade técnica para executar as obras ou enfrentar os lobbies locais com interesses no dinheiro público e que impedem intervenções estruturantes. Sem planejamento integrado entre municípios, estado e União, o que deveria ser reconstrução vira remendo, e o risco volta na próxima chuva.
É como atualizar o antivírus do PC depois de já ter sido hackeado. E aí, quando o mesmo vírus aparece de novo, o estrago é ainda maior.
Enquanto isso, a população tenta sobreviver. A Conab está distribuindo 68 toneladas de alimentos da agricultura familiar, com 4 mil cestas básicas entregues às famílias em Canoas, Porto Alegre e cidades da Região Metropolitana. Um gesto de solidariedade concreta, mas que, mais uma vez, só chega depois que tudo já está debaixo d’água.
E por que isso tudo nos afeta diretamente, mesmo que a gente viva no RS ou nem tão perto?
Porque o RS é uma das principais regiões produtoras de alimentos do país. Quando o arroz some das lavouras, ele encarece no seu prato. Quando o leite não chega, o mercado sente. Quando a soja atrasa, o dólar reage. A previsão é de uma perda de R$ 68 milhões só na produção de arroz. A conta não fica só no campo. Ela chega à cidade, no bolso de quem consome. Ou seja, a crise climática tem efeito colateral direto no seu custo de vida e no Brasil.
E tem mais. Enchente não é castigo divino, nem azar, nem algo que “Deus quis assim”. Chuva é fenômeno natural, mas os desastres que ela causa e que poderiam ser evitados são profundamente sociais e políticos. As enchentes e os desastres são fruto de um modelo urbano predatório, de falta de políticas públicas, de negligência do governo do estado do RS e das prefeituras, de interesses econômicos que ignoram a vida para beneficiar grupos interessados em licitações fáceis, especulação imobiliária e o lucro fácil. A resposta é complexa, mas clara: dinheiro não basta quando falta projeto, prioridade e coordenação. É como se, sabendo que o telhado está furado, preferíssemos rezar para não chover, em vez de consertar logo.
Ou seja, muita chuva não é e nunca foi sinônimo de enchente!
O desastre, a enchente, é consequência. E consequência de descaso tem responsáveis. E vamos por ordem: 1. Eduardo Leite (o abobado da enchente); 2. Prefeitos(as); 3. Governo federal.
Quem mais sofre? Sempre os mesmos. A enchente, como quase tudo em um Brasil brutalmente desigual, também é seletiva. Ela arrasta mais fortemente os pobres, os periféricos, os ribeirinhos, os que vivem nas bordas invisíveis das cidades. Quem pode construir no alto, se protege. Quem vive no baixo, afunda. A tragédia atinge o corpo da cidade, mas é o povo que sente no corpo. Isso se chama no campo acadêmico e de movimentos sociais, injustiça e racismo ambiental.
E o mais perverso é que essa tragédia tem se tornado previsível. É como ver o filme pela terceira vez e, mesmo sabendo o final, poucas pessoas se levantam do sofá para mudar o roteiro. A cada ano, as águas voltam. A cada ano, as autoridades gestam no improviso, no amadorismo e com interesses alheios a maioria da população. A cada ano, o povo reconstrói, até a próxima chuva.
Enquanto isso, o clima segue mudando. Os eventos extremos se intensificam. A gestão estadual e prefeituras seguem no amadorismo. O governo federal não compra a briga. Não se trata mais de perguntar se vai acontecer de novo, mas quando. E onde. E quem vai ter a casa alagada e até morrer da próxima vez.
O que as enchentes no Rio Grande do Sul tem a ver com a nossa vida? Tudo. Porque revelam o que estamos escolhendo como sociedade: ignorar o óbvio, empurrar soluções com a barriga, deixar o povo se virar e não debater seriamente as mudanças climáticas. Se nada mudar, o que hoje vemos no RS vai ser cada vez mais rotina do país inteiro.
Se quisermos outro futuro, ele precisa começar agora, com ações concretas, estruturais e sustentáveis. Porque não há situação emergencial e paliativa que dê conta de tanta omissão.
Obs: imagem de capa gerada por IA (Open IA) sob comando humano.
por aqui no Amazonas enfrentamos algo parecido com nossos rios. Mesmo com distâncias, estamos na mesma questão.