19 - Ditadura militar no Brasil: Escritores(as), editoras e Academia Brasileira de Letras apoiaram? Como assim?
Série "O que tem a ver com a nossa vida?"
Na semana passada duas matérias foram publicadas pela Agência Pública e pelo Nexo Jornal sobre a relação entre escritores(as), editoras e a ditadura civil-militar brasileira desmonta a visão romântica de que a intelectualidade literária seria, por natureza, aliada da democracia ou da liberdade. Pelo contrário, os documentos e evidências trazidos nas respectivas matérias que revelam como boa parte do campo editorial e literário, incluindo figuras de projeção nacional como Rachel de Queiroz, Gilberto Freyre, Dinah Silveira de Queiroz, Rubem Fonseca e mesmo Guimarães Rosa, aderiu com entusiasmo, ou ao menos com pragmatismo, ao golpe militar de 1964 e ao regime autoritário que se seguiu.
A reportagem da Pública mostra como, já nos meses que antecederam o golpe em abril de 1964, intelectuais ligados à Academia Brasileira de Letras (ABL) e a grandes editoras passaram a atuar ativamente na desestabilização do governo João Goulart. Isso não ocorreu apenas por meio de textos ou manifestos, mas também pela associação direta com instituições como o IPÊS e o IBAD, que foram formuladoras intensas de propaganda anticomunista e antirreformista. Muitos(as) escritores(as) cederam sua credibilidade simbólica para sustentar a narrativa de que o golpe civil militar era uma medida necessária para salvar o país da desordem e do “perigo vermelho”. Essa aliança não se rompeu com a institucionalização do autoritarismo. Pelo contrário, o regime passou a financiar a publicação de obras simpáticas a ditadura, promover autores(as) que o legitimassem e censurar ou marginalizar aqueles(as) que o criticavam.
A participação de editoras como José Olympio, Record, Agir e Globo não foi apenas uma concessão diante da censura. Tratou-se, em muitos casos, de uma colaboração deliberada e por convicção ao projeto político dos militares. Rubem Fonseca, que mais tarde viria a ser celebrado por sua crítica ácida à violência e à repressão, trabalhou como diretor da Editora Civilização Brasileira durante o período mais duro do regime, mas também foi funcionário do IPÊS e atuou como autor oculto de publicações ideológicas pró-golpe. A contradição aqui não é apenas biográfica. As matérias nos fazem refletir como o campo literário pode, por vezes, reconfigurar seus compromissos éticos e políticos conforme os ventos do poder. E hoje, como seria?
A matéria do Nexo aprofunda esse diagnóstico ao mostrar que essa adesão ao regime não foi apenas uma exceção ou um erro de julgamento isolado. Ela traz uma forma específica de conservadorismo intelectual presente entre muitos(as) escritores(as) da época, marcada por elitismo, autoritarismo e desconfiança em relação à ampliação dos direitos sociais promovida por Goulart. O medo do comunismo, mobilizado intensamente por militares e empresários, encontrou eco entre aqueles(as) que viam na ordem e na hierarquia valores a serem defendidos inclusive contra a democracia. A ABL, como símbolo da cultura oficial, foi cooptada com facilidade e passou a representar uma literatura a serviço do regime, ou ao menos uma literatura cúmplice de seu silêncio.
No entanto, é fundamental reconhecer que esse não foi o único papel possível da cultura naquele período. A resistência existiu, embora sob risco constante de censura, prisão ou exílio. Editoras como Vozes, Paz & Terra e a própria Civilização Brasileira, sob a direção de Ênio Silveira, publicaram obras fundamentais para a crítica à ditadura, muitas delas clandestinas ou com circulação limitada. Autores como Ferreira Gullar, Antônio Callado, Carlos Heitor Cony, entre outros, mantiveram acesa a chama de uma literatura que se colocava em confronto com o arbítrio. E isso nos leva a uma constatação importante: se a cultura pode servir ao poder, também pode servir para combatê-lo. Tudo depende das escolhas de seus protagonistas.
Essas revelações impõem à memória literária brasileira uma necessária reavaliação. Muitos dos nomes que frequentam os currículos escolares, as estantes de premiações e os salões da Academia participaram de maneira direta ou indireta da sustentação simbólica de um dos períodos mais violentos da história brasileira. Essa constatação não exige o apagamento dessas figuras, mas sim a complexificação de sua biografia e de sua obra. Uma democracia madura é capaz de lidar com os paradoxos dos seus ícones, reconhecendo tanto suas contribuições quanto suas omissões ou conivências.
A reflexão que pode ser feita a partir dessas reportagens se projeta para o presente. Em tempos de erosão democrática, de revisionismo histórico e de tentativas de reabilitar o legado da ditadura, torna-se urgente perguntar qual o papel atual dos(as) escritores(as), intelectuais e produtores(as) culturais. Silenciar-se diante da ascensão autoritária ou aderir ao poder sob o pretexto da neutralidade estética é repetir, com novas roupagens, a mesma capitulação observada em 1964. A literatura, assim como qualquer forma de arte, não é inocente nem neutra. Ela carrega em si um projeto de mundo, e por isso mesmo, tem responsabilidade histórica.
O que tem a ver com a nossa vida? Se há uma lição possível ao revisitar esse passado de cumplicidade cultural com o autoritarismo, é a de que não basta escrever bem, editar com competência ou ocupar uma cadeira em uma associação ou academia. É preciso escolher de que lado da história se está. Porque a literatura, afinal, também pode matar ou salvar, dependendo da causa a que serve, não é?
Obs: imagem de capa gerada por IA (Open IA) sob comando humano.